Introdução
No cenário atual, marcado por altos níveis de estresse, ansiedade e outros transtornos psíquicos, a busca por estratégias que promovam o bem-estar mental se torna cada vez mais relevante. A prática de atividade física é reconhecida por seus efeitos positivos na saúde física, mas seu impacto na saúde mental também merece destaque. Sob a ótica da psicanálise, o corpo não é apenas uma estrutura biológica, mas um campo de expressão do inconsciente, onde os conflitos psíquicos podem se manifestar de forma somática.
Freud (1895) já apontava que os sintomas físicos podem ser compreendidos como manifestações de conflitos psíquicos reprimidos, destacando a relação entre corpo e mente. Assim, refletir sobre como o exercício físico atua na dinâmica psíquica é fundamental para compreender seu papel terapêutico.
1. Corpo, Inconsciente e Pulsão: A Ligação Entre o Psíquico e o Físico
A psicanálise, desde Freud, aponta para a relação intrínseca entre o corpo e a mente. Em Estudos sobre a Histeria, Freud e Breuer (1895) introduzem o conceito de conversão, em que conflitos inconscientes se manifestam em sintomas corporais. Segundo Freud (1920), a energia psíquica reprimida busca descarregar-se de algum modo, podendo emergir como sintomas físicos ou através de atividades que permitam essa liberação.
A prática de atividade física, nesse contexto, pode ser entendida como uma via de descarga pulsional, um mecanismo pelo qual a energia psíquica acumulada encontra uma forma de expressão e alívio. Para Freud (1920), a pulsão, sendo a força que liga o psíquico ao somático, necessita de vias para se escoar, e o exercício físico pode cumprir essa função ao proporcionar uma canalização saudável das tensões internas.
Além disso, o equilíbrio entre o princípio do prazer e o princípio da realidade é favorecido pela prática de atividades físicas, permitindo ao sujeito lidar com as demandas sociais sem reprimir totalmente suas pulsões (FREUD, 1920).
2. A Atividade Física Como Sublimação
Um conceito fundamental na psicanálise freudiana é o de sublimação, processo pelo qual as pulsões de natureza sexual ou agressiva são desviadas para atividades socialmente aceitas e valorizadas (FREUD, 1905). O esporte, nesse sentido, pode ser considerado um campo privilegiado de sublimação, pois permite a transformação de impulsos inconscientes em ações concretas e produtivas.
Freud (1930), em O Mal-Estar na Civilização, destaca que a civilização impõe restrições às pulsões, gerando inevitavelmente um certo grau de sofrimento psíquico. No entanto, atividades como o exercício físico oferecem uma via de escape para essas tensões, ajudando a minimizar o mal-estar derivado da repressão pulsional.
Segundo Birman (2001), a sublimação através do corpo em movimento não apenas reduz a angústia, mas também permite ao sujeito criar novas formas de significar suas experiências, promovendo uma reorganização psíquica.
3. O Exercício Físico e a Regulamentação do Gozo
Lacan, em seu desenvolvimento da teoria psicanalítica, aprofunda a noção de gozo, entendido como um prazer que ultrapassa os limites do princípio do prazer e pode se tornar fonte de sofrimento (LACAN, 1966). Para ele, o sujeito é constantemente atravessado por um excesso de gozo que precisa ser regulado.
A prática de exercícios físicos, ao exigir disciplina e repetição, funciona como um mecanismo de controle desse gozo excessivo (LACAN, 1972-73). Segundo Dunker (2011), o esporte, com suas regras e limites, oferece uma forma de domesticar o gozo, permitindo ao sujeito organizar suas pulsões de maneira socialmente aceitável.
Além disso, a repetição inerente à prática esportiva pode ser compreendida como um ritual simbólico que organiza o psiquismo e oferece um espaço de contenção para as angústias inconscientes (LACAN, 1972-73).
A prática de atividade física não só regula tensões, mas também cria um espaço de elaboração simbólica. Segundo Winnicott (1975), o brincar – entendido como qualquer atividade criativa, incluindo o exercício – permite ao sujeito explorar e elaborar suas experiências emocionais de modo seguro.
Durante a prática esportiva, há um deslocamento da atenção consciente, permitindo que conteúdos inconscientes emerjam de forma menos ameaçadora (BIRMAN, 2001). Esse movimento pode ser entendido como um ato simbólico que reorganiza as representações psíquicas, facilitando a elaboração de experiências traumáticas.
4. O Corpo em Movimento Como Espaço de Elaboração Psíquica
De acordo com Le Breton (2009), o corpo em movimento é também um espaço de reinvenção subjetiva, onde o sujeito pode negociar suas tensões psíquicas e redefinir sua relação com o próprio corpo e com o mundo ao seu redor.
Conclusão
A atividade física, sob a perspectiva da psicanálise, vai além dos benefícios biológicos: ela se configura como um importante dispositivo de regulação psíquica. Ao permitir a descarga pulsional, favorecer a sublimação e regulamentar o gozo, o exercício oferece ao sujeito uma via de elaboração simbólica, contribuindo para a saúde mental.
Dessa forma, integrar a prática de atividades físicas às estratégias de cuidado psíquico pode ser uma ferramenta poderosa para lidar com o mal-estar contemporâneo, promovendo um equilíbrio entre corpo, mente e sociedade (FREUD, 1930; LACAN, 1972-73).
Referências
BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
DUNKER, Christian Ingo Lenz. Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica. São Paulo: Annablume, 2011.
FREUD, Sigmund. Estudos sobre a Histeria. 1895.
FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. 1905.
FREUD, Sigmund. Além do Princípio do Prazer. 1920.
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. 1930.
LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1966.